PLANTAS MEDICINAIS, ESSAS VELHAS CONHECIDAS !!!


Manuscrito Ilustrado de Ervas Medicinais, autoria desconhecida (Século XI) - Biblioteca Britânica

Manuscrito Ilustrado de Ervas Medicinais, autoria desconhecida (Século XI) - Biblioteca Britânica

A pretensão desta nossa coluna é a de trazer, a cada artigo, um conjunto de informações relevantes de Plantas Medicinais ocorrentes no Brasil, organizadas à partir de revisão na literatura sobre o que diferentes estudos científicos elucidaram sobre seus compostos ativos e suas aplicações na medicina, autocuidado e fitoterapia. Obviamente, essa pretensão não chega ao ponto de pretender esgotar o assunto para cada planta a ser apresentada, mas buscaremos trazer o máximo possível de informações consolidadas na literatura sobre os diferentes aspectos interessantes evidenciados pela ciência sobre tais plantas. A cada artigo mensal traremos uma planta diferente, com um pouco da sua história etnobotânica, sua posição taxonômica no Reino Vegetal, seus constituintes fármacos e seus efeitos reconhecidos. Neste artigo introdutório e de apresentação da coluna, vamos abordar aspectos gerais e culturais no uso de Plantas Medicinais, trazendo marcos regulatórios para seu uso, e fazer um breve passeio na biblioteca desde tempos ancestrais até a atualidade.

A ciência que estuda de forma articulada as contribuições da botânica e da etnologia, evidenciando as interações entre as sociedades humanas e plantas como sistemas dinâmicos, é chamada Etnobotânica. Para Allen et al. (2002), essa denominação para esse campo de estudo deve ter sido, provavelmente, utilizado pela primeira vez em 1895, por John Harshberger, um dos primeiros botânicos americanos na Flórida. Em artigo mais recente, Talukdar & De (2016), citando Harshberger (1895), relatam que o Dr. John Harshberger explicou o termo etnobotânica que inaugurava naquele seu artigo, como sendo “o estudo de plantas pela população nativa”. Acrescentam, que desde então, o termo teve gradativas ampliações no seu escopo, estando relacionado em nossos dias com praticamente todos os campos de estudo. Existem muitos componentes da etnobotânica atualmente, incluindo religião, mitologia, alimentação, construção, pesca, caça, e muitos outros, sem esquecer, obviamente, a medicina e saúde, campo onde nos interessa tratar da etnobotânica tendo as Plantas Medicinais como objeto central.

A utilização de plantas medicinais pelos seres humanos remonta no tempo à própria origem da espécie, pois pelo que se pode observar no comportamento dos animais, certamente os ancestrais do Homo sapiens já as utilizava intuitivamente no seu dia a dia. Segundo Rocha et al. (2015), registros arqueológicos apontam a sua importância cultural desde 60.000 anos AC. Povos antigos como os Egípcios, Gregos, Hindus, Persas e, mais recentemente, os povos da América Pré-colombiana, aplicavam extensamente tais recursos terapêuticos, contribuindo para a construção dos sistemas de Medicina Tradicional dispersos ao redor do mundo.

Apesar de que já em 1500 os marinheiros da embarcação de Pedro Alvares Cabral haviam observado com atenção os usos de plantas que os indígenas faziam como medicinais em suas curas no Brasil (WALKER, 2013), os primeiros registros sobre essas plantas se iniciou, segundo Coraza (2002), citado por Brito et al. (2013), entre 1560 e 1580, período em que o jesuíta José de Anchieta relatou minuciosamente as plantas comestíveis e medicinais do Brasil em sua correspondência com o superior-geral da Companhia de Jesus, em Portugal. Entre muitas outras informações nessas correspondências, o padre Anchieta cita uma "erva boa" quando se referiu à Mentha piperita, utilizada pelos índios para combater indigestão, suavizar nevralgias, reumatismo e doenças nervosas (CORAZA, 2002; BRITO et al., 2013).

Em seu “Tratado descritivo do Brasil em 1587”, Gabriel Soares de Souza apresenta um perfil do Brasil, com bastante ênfase na Bahia, que registrara durante 17 anos de sua permanência por aqui. Nesses escritos dedica capítulos para o que chamou de “Árvores Medicinais” (Título 6) e “Ervas Medicinais” (Título 7), denominando-as de plantas de “virtude” (SOUZA, 1587).

A prática do uso de Plantas Medicinais já incorporadas culturalmente pela população brasileira até o início do Século XX, teve uma importante diminuição nas décadas de 1940 e 1950, frente ao processo crescente de industrialização e entrada no mercado das drogas sintéticas, que passaram a ser usadas crescentemente em substituição às Plantas Medicinais (BRUNNING et al., 2012).

O surgimento a partir dos anos 1960 de novos modelos em cura e saúde, principalmente com o movimento social urbano denominado contracultura, fortemente expressos nos anos 1970 nos EUA e Continente Europeu, trouxe então a importação de antigos sistemas médicos como a medicina tradicional chinesa e a ayurvédica indiana, além da reabilitação das medicinas populares. Esse movimento crescente não atingiu posteriormente apenas os grandes centros urbanos no Brasil, mas o conjunto dos países latinoamericanos na década de 1980 (LUZ, 1997).

Em setembro de 1978 foi realizada a primeira Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, organizada pela OMS e UNICEF em Alma-Ata, capital da República do Cazaquistão. Essa Conferência resultou na adoção pelos países participantes, entre eles o Brasil, por uma Declaração que reafirmou o significado da saúde como um direito humano fundamental, e influenciou países no desenvolvimento de políticas públicas em todo o mundo. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu que "a saúde é direito de todos e dever do Estado ... e o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação". Como consequência, a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, criou o Sistema Único de Saúde (SUS) e priorizou a Atenção Primária à Saúde (APS) como principal estratégia para atender às necessidades de saúde da nossa população (BANDINI & LUCCA, 2018). Nessa conferência, entre outras importantes decisões, recomendou-se aos estados membros procederem à "formulação de políticas e regulamentações nacionais referentes à utilização de remédios tradicionais de eficácia comprovada e exploração das possibilidades de incorporar os detentores de conhecimento tradicional às atividades de atenção primária em saúde, fornecendo-lhes treinamento correspondente”.

O uso de plantas medicinais passou a ser reconhecido como recurso terapêutico válido nos meios institucionais no Brasil nas ultimas décadas do Século XXl, iniciando-se as discussões sobre a sua incorporação nos sistemas de saúde pública, o que resultou em avanços significativos. Destacarei aqui alguns dos marcos legais e institucionalidade mais relevantes, com links para seus conteúdos para quem se interessar em conhecer:

Portaria Nº 971, de 03 de maio de 2006 - Aprova a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde.

Decreto nº 5.813, de 22 de junho de 2006 - Aprova a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos e dá outras providências.

Portaria Nº 1.600, de 17 de julho de 2006 - Aprova a constituição do Observatório das Experiências de Medicina Antroposófica no Sistema Único de Saúde (SUS).

Portaria Interministerial nº 2.960, de 9 de dezembro de 2008 – Aprova o Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos e cria o Comitê Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos.

Portaria Nº 886, de 20 de abril de 2010 - Institui a Farmácia Viva no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

Resolução da Diretoria Colegiada – Anvisa – RDC nº 18, de 3 de abril de 2013 - Dispõe sobre as boas práticas de processamento e armazenamento de plantas medicinais, preparação e dispensação de produtos magistrais e oficinais de plantas medicinais e fitoterápicos em farmácias vivas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

Portaria N° 702, de 21 de março de 2018 - Altera a Portaria de Consolidação nº 2/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, para incluir novas práticas na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares - PNPIC.

Uma relação exaustiva da legislação vigente sobre Plantas Medicinais e Fitoterápicos poderá ser encontrada no Portal do Ministério da Saúde.

Neste artigo inicial, penso ser importante trazer a nomenclatura, terminologia e conceitos oficiais quando nos referimos a Plantas Medicinais, Fitoterápicos, e correlatos, conforme estabelecido nas normas emanadas do Ministério da Saúde e ANVISA.

i) Planta medicinal: espécie vegetal, cultivada ou não, utilizada com propósitos terapêuticos.
ii) Droga vegetal: planta medicinal, ou suas partes, que contenham as substâncias, ou classes de substâncias, responsáveis pela ação terapêutica, após processos de coleta, estabilização, quando aplicável, e secagem, podendo estar na forma íntegra, rasurada, triturada ou pulverizada.
iii) Chá medicinal: droga vegetal com fins medicinais a ser preparada por meio de infusão, decocção ou maceração em água pelo consumidor.

O chá medicinal ou a droga vegetal como produto acabado são considerados fitoterápicos.

iv) Fitoterápico: produto obtido da planta medicinal, ou de seus derivados, exceto substâncias isoladas, com finalidade profilática, curativa ou paliativa.
v) Medicamento fitoterápico: é aquele obtido com emprego exclusivo de matérias-primas ativas vegetais cuja segurança e eficácia seja baseada em evidências clínicas e que seja caracterizado pela constância de sua qualidade.
vi) Produto tradicional fitoterápico: aquele obtido com emprego exclusivo de matérias-primas ativas vegetais cuja segurança e efetividade sejam baseadas em dados de uso seguro e efetivo publicados na literatura técnico-científica e que seja concebido para ser utilizado sem a vigilância de um médico para fins de diagnóstico, de prescrição ou de monitorização.
vii) Fitoterápico manipulado: preparação magistral e oficinal de fitoterápico em farmácia de manipulação e em Farmácia Viva.

Farmácia viva, no contexto da Política Nacional de Assistência Farmacêutica, deverá realizar todas as etapas, desde o cultivo, a coleta, o processamento, o armazenamento de plantas medicinais, a manipulação e a dispensação de preparações magistrais e oficinais de plantas medicinais e fitoterápicos.

viii) Fitoterápico industrializado: pode ser considerado o produto tradicional fitoterápico e o medicamento fitoterápico.

Como citado na introdução desse artigo, iremos tratar nessa coluna de organizar informações levantadas na literatura científica sobre Plantas Medicinais e Fitoterapia, dentro do contexto etnobotânico, trazendo uma planta a cada artigo. Nosso critério inicial para a seleção das plantas a serem estudadas será a Relação Nacional de Plantas Medicinais de Interesse ao SUS – RENISUS, iniciando no próximo artigo com a Achillea millefolium, muito conhecida como Mil Folhas, Mil em Ramas, Anador, entre uma infinidade de outros nomes populares, mas isso será assunto para o nosso próximo encontro. Espero vocês !!!

Opiniões, dúvidas e sugestões de temas para novos artigos pertinentes à esta coluna, serão muito bem-vindas pelo email Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

FONTES CONSULTADAS

ALLEN, G. M.; BOND, M. D.; MAIN, M.B. 50 Common Native Plants Important In Florida’s Ethnobotanical History. Circular 1439, Wildlife Ecology and Conservation Department, Florida Cooperative Extension Service, Institute of Food and Agricultural Sciences, University of Florida. Published December 2002. Reviewed November 2012. https://www.growables.org/informationVeg/documents/50NativePlamtsEthno.pdf Acessado em 15 de março de 2020.

BANDINI, M. & LUCCA, S. R. De Alma-Ata a Astana: por que a atenção primária à saúde interessa aos profissionais da saúde no trabalho? Revista Brasileira de Medicina do Trabalho, 16(4):391-392, 2018. https://bit.ly/2whw7W1 Acessado em 15 de março de 2020.

BRITO, A. M. G.; RODRIGUES, S. A.; BRITO, R. G.; XAVIER-FILHO, L. Aromaterapia: da gênese a atualidade. Revista Brasileira de Plantas Medicinais, 15(4):789-793, 2013. http://www.scielo.br/pdf/rbpm/v15n4s1/21.pdf Acessado em 14 de março de 2020.

BRUNING, M. C. R.; MOSEGUI, G. B. G.; VIANNA, C. M. M. A utilização da fitoterapia e de plantas medicinais em unidades básicas de saúde nos municípios de Cascavel e Foz do Iguaçu - Paraná: a visão dos profissionais de saúde. Ciência & Saúde Coletiva 17(10):2675-2685, 2012.http://www.scielo.br/pdf/csc/v17n10/17.pdf Acessado em 16 de março de 2020.

LUZ, M. T. Cultura contemporânea e medicinas alternativas: novos paradigmas em saúde no fim do século XX. Revista de Saúde Coletiva, 7(1): 13-43, 1997. http://www.scielo.br/pdf/physis/v7n1/02.pdf Acessado em 12 de março de 2020.

ROCHA, F. A. G.; ARAÚJO, M. F. F.; COSTA, N. D. L.; SILVA, R. P. O uso terapêutico da flora na história mundial. Holos, 31(1): 49-61, 2015. http://www2.ifrn.edu.br/ojs/index.php/HOLOS/article/view/2492/pdf_151 Acessado em 10/03/2020.

SOUSA, G. S. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me003015.pdf Acessado em 15 de março de 2020.

TALUKDAR, N. R. & DE, A. Ethnobotanical knowledge used for primay health care in Lohaarbond Region of Innerline Reserve Forest. International Journal of Recent Scientific Research, 7(5):11200-11206, 2016. http://www.recentscientific.com/sites/default/files/5361.pdf Acessado em 15 de março de 2020.

WALKER, T. D. The medicines trade in the Portuguese Atlantic World: acquisition and dissemination of healing knowledge form Brazil (c. 1580-1800). In: Social History of Medicine Advanced Access. Oxford: Oxford University Press, 2013. https://bit.ly/3b51Dp7 Acessado em 16 de março de 2020.

20.03.2020

 

Pajé na Biblioteca



Articulando a sabedoria ancestral com o conhecimento científico sobre Plantas Medicinais.


Onaur Ruano é graduado em Agronomia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP, e mestre em Fitopatologia pela Universidade Federal de Viçosa. Foi Pesquisador Científico de carreira no Instituto Agronômico do Paraná - IAPAR entre 1978 e 2008, tendo sido seu Diretor-Presidente. No Governo Federal, entre abril de 2005 e maio de 2016, foi Secretário Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e Secretário-Executivo Adjunto do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS, Secretário-Executivo da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional - CAISAN, e Secretário Nacional da Agricultura Familiar no Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA. Nesse período foi representante governamental pelo MDS e MDA no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - CONSEA. Entre agosto de 2009 e fevereiro de 2010 exerceu atividades de consultoria para a Food and Agriculture Organization of the United Nations no Projeto FAO - UTF/BRA/064/BRA. Atualmente é Agricultor Agroecológico associado à Rede Ecovida de Agroecologia na Pacha Mama Agroecologia, idealizador e coordenador do Projeto UBUNTU para produção de Óleos Essenciais e Hidrolatos Orgânicos à partir de cultivos de Plantas Aromáticas em Sistemas Agroflorestais Agroecológicos. "Cheguei ao topo da carreira !!!", é como ele mesmo gosta de se referir nessa condição atual de Agricultor Agroecológico.