Comer é um ato político. Comida de verdade é aquela que reconhece o protagonismo da mulher, respeita os princípios da integralidade, universalidade e equidade. Não mata nem por veneno e nem por conflito. É aquela que erradica a fome e promove alimentação saudável, conserva a natureza, promove saúde e paz entre os povos. Este trecho do Manifesto da V Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional põe no prato da sociedade a discussão sobre comida de verdade e sobre a soberania e segurança alimentar.
Como apresentado anteriormente em outros artigos desse blog, em especial os dois primeiros, a mulher foi a responsável pelo descobrimento da agricultura através do seu trabalho como responsável pela colheita, cultivo e processamento de grãos, frutas, legumes, dentre outros. Vimos também que ao longo da história a mulher teve seu protagonismo transformado em cinzas, sendo essas mulheres renegadas ao papel, em muitos casos, de figurante na atuação do ser masculino, apesar de muitas delas terem se mantido no curso da história como provedoras dos seus lares, sejam eles urbanos ou rurais. Assumindo assim duplas ou triplas jornadas de trabalho para se manterem num sistema que cobra dessas mulheres um papel de trabalhadoras sem famílias a serem cuidadas, ao mesmo tempo que cobra e endurece o açoite para as genitoras que devem dar atenção integral a essa família.
Nessa ambiguidade entre mulheres disponíveis para o mercado de trabalho – mesmo as mulheres rurais que sempre estão desenvolvendo atividades econômicas para levar o sustento para suas casas - e mãe dedicada ao lar, cada vez mais as mulheres necessitaram lançar mão do que tinha de mais fácil e ágil para alimentar as suas famílias, e assim, como bem coloca o Manifesto do Slow Food estamos “escravizados pela rapidez e sucumbimos todos aos mesmo vírus insidioso da Fast Life”, que tem destruído nossos hábitos e culturas alimentares, além de ameaçar o equilíbrio do nosso ambiente.
Entre os problemas causados pela “Fast Life” imposta aos seres humanos, sejam eles residentes numa megalópole ou uma comunidade ribeirinha, por exemplo, está a obesidade da população.
De acordo com Organização Mundial de Saúde (OMS), 1 em cada 3 pessoas está acima do peso e 1 a cada 8 adultos em todo o planeta é obeso. A mesma OMS alerta que a projeção é que para 2025 teremos 2,3 bilhões de indivíduos acima do peso e mais de 700 milhões com obesidade. No Brasil a taxa de obesos alcançou 18,9% da população, enquanto o sobrepeso atinge mais da metade desta, ou seja 54%.
Pesquisa da Vigilância de Fatores de Risco e Proteção de Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), afirma que entre os jovens brasileiros a obesidade aumentou 110% entre 2007 e 2017. Já em âmbito mundial, entre 1980 e 2014, a proporção de obesos mais que duplicou, segundo a OMS. Esses obesos estão concentrados em 10 países e o Brasil, infelizmente, faz parte desse grupo. A quantidade de pessoas obesas no Brasil tem acelerado nos últimos anos se aproximando das taxas dos países ricos. Seguindo esse ritmo, calcula-se que o Brasil terá 11,3 milhões de crianças obesas até 2025.
Os dados da obesidade mundial alarmam quando nos deparamos com os números de crianças com doenças crônicas relacionadas ao aumento de peso, que de acordo com a OMS, daqui a 5 anos, teremos 1 milhão de crianças hipertensas, mais de 400 mil pré-diabéticos e 1,4 milhão com acúmulo de gordura no fígado. Esses dados levaram pesquisadores chegarem à conclusão que pela primeira vez na história a geração atual têm expectativa de vida menor que a de seus pais, e isso se dá pela alimentação inadequada.
O Brasil e outros países – nove em cada dez – estão à beira de uma epidemia de saúde conhecida como “carga dupla da má nutrição”: obesidade e desnutrição caminhando juntas. Todos os dias, 820 milhões de pessoas passam fome, enquanto outros milhões sofrem de obesidade. No nosso país, após séculos de Severinos sucumbindo pela “fome um pouco por dia”, e um pequeno respiro de menos de uma década de mínima saciedade, a fome mais uma vez bate à porta de milhares de brasileiros.
De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), no Brasil a subnutrição e a anemia vêm aumentando em mulheres em idade reprodutiva e cerca de sete milhões de brasileiros não têm nenhuma perspectiva de quando será a próxima refeição. Enquanto outros dois milhões estão em lares em que alguns comem e outros deixarão de comer. Valendo a ressalva que esses outros, quase em 100%, são representados pelas mulheres que primeiro alimentam os filhos e o companheiro.
Entre as causas para a pandemia da obesidade está a ampla oferta de alimentos processados e ultra processados nefastos à saúde, que chega em especial a população mais pobre com preço acessível tanto quanto calóricos. O distanciamento que temos presenciado no percurso da história da alimentação na humanidade dos alimentos tradicionais, tem trazido a mesa da população mundial o consumo crescente de açúcares, gorduras e carnes na sua maioria processada, e um baixo consumo de grãos e leguminosas, em especial in natura. A “Fast Life” não permite um modo de vida onde se tenha prazeres com o fazer e saborear boas refeições.
Já a desnutrição é um mal causado pela falta de comida e pela má nutrição. Especialmente as crianças estão expostas em suas casas, escolas e espaços recreativos, a salgadinhos, produtos artificiais, açucarados e tantas outras guloseimas ultra processadas que tem substituído refeições parcial ou completamente. Nesse ponto vale ficar atento para as grandes corporações alimentares, que dominam e monopolizam a oferta de alimentos no mundo, uma vez que temos 10 empresas distribuindo quase tudo que se consome no planeta.
Cada um de nós necessita se alimentar diariamente para se manter vivo, o que torna a alimentação mundial um enorme mercado. Para se ter ideia do faturamento desse mercado, em 2018 as 25 maiores empresas de alimentos geraram US$ 1,1 trilhão de receita, onde somente a Nestlé lucrou US$ 10,3 bilhões. Essas empresas detém logística para distribuição de alimentos a um custo baixo à todos os rincões da Terra, além de realizarem lobby constante afim de garantir benefícios para a industrialização, promovendo o consumo dos seus produtos. Citamos ainda o uso, por estas indústrias de alimentos, dos Organismos Geneticamente Modificados OGM na produção de diversos alimentos sem que se saiba ao certo os efeitos negativos para a saúde dos consumidores.
Indo na contramão da alimentação cada dia mais docemente gordurosa e empobrecida de nutrientes e vitaminas, para vencermos as duas pandemias supracitadas teremos que trilhar um caminho onde alimentos in natura ou minimamente processados sejam a base da nossa alimentação, limitando os alimentos processados, evitar os ultra processados e utilizar em pequenas quantidades óleo, gorduras, sal e açúcares.
É importante destacar que muitas pessoas não têm acesso a frutas, legumes, vegetais frescos, grãos, entre outros, vivendo em plenos desertos alimentares. Alimentos saudáveis não são democraticamente distribuídos, os orgânicos chegam a uma parcela ínfima da população mundial, que pode ser dar ao “luxo” de não comer diariamente alimentos além de ultra processados, também contaminados.
Mas, mesmo diante de um cenário tão dantesco, há esperança. E essa esperança encontra-se nas mãos de pequenas/os agricultoras/es, que produzindo alimentos para suas famílias e para os que vivem ao seu entorno alimentam com qualidade os mais pobres. É sabido que mais da metade das calorias consumidas no mundo são produzidas por pequenas/os agricultoras/es, mesmo essas detendo apenas 30% das terras agrícolas do mundo. O que nos leva a refletir que para uma democratização do alimento saudável é preciso haver também a democratização do acesso à terra e outros insumos para a produção de alimentos.
Os alimentos produzidos pela agricultura familiar e camponesa, estabelecem uma estreita relação entre sociedade, natureza e cultura, e orienta-se na sustentabilidade da vida humana e do planeta. A agroecologia tem como um dos pilares a soberania alimentar, promovendo um processo de ressignificação da alimentação, dos diferentes modos de vida, produzir e comer.
Contudo, os processos de soberania e segurança alimentar necessitam reconhecer a contribuição das mulheres que por mais 4 décadas vêm lutando pelo acesso à terra para produzir alimentos para sua família e para os que vivem no se entorno. Além do papel na luta pelo acesso democrático à terra, as mulheres desempenham papel fundamental em todas as etapas do sistema alimentar. Uma vez que atuam do plantio ao processamento e consumo dos alimentos, assim como são em muitos casos, as mulheres quem iniciam a transição agroecológica, em espacial a partir das hortas, da criação de pequenos animais, das plantas medicinais, PANC entre outras. Esse trabalho necessita urgentemente em todas as esferas, públicas e privadas, ser reconhecido.
As mulheres, mesmo constituindo a categoria mais pobre do mundo, possuem o protagonismo na minimização dos impactos da pobreza em suas famílias e na ampliação das relações sociais, como podemos observar no relato que consta no livro Mulheres e Soberania Alimentar: “Cora acorda às 4h15 da manhã. Às 4h30 faz o café e vai para o quintal cuidar dos bichos e coletar os ovos que serão consumidos pela família. São trinta ao todo que ela limpa e alimenta: dez porcos, dez galinhas e dez codornas. Às 5h40 ela segue para a rega das plantas, diz que tem que ser antes do sol nascer, porque senão queima as folhas. Depois de aguar tudo, limpa a roça e colhe o que vai precisar para a comida do dia. Cora cuida do seu quintal, que tem mais de 43 espécies de plantas, das quais vinte são frutíferas. É com o que recebe do seu trabalho no quintal que ela alimenta sua família, entre as plantas e bichos. Cora garante alimentação saudável para os seus através desse trabalho”.
Assim como Cora, centena de milhares de mulheres gastam parte do seu dia na manutenção da casa, dos quintais e da família, trabalho esse dado como natural das mulheres e, por conseguinte, invisível. Ao longo do texto estamos afirmando o papel das mulheres e da agroecologia para a soberania e a segurança alimentar, contudo, em uma sociedade marcada pela construção ideológica do capitalismo, do racismo e do patriarcado, na qual os bens materiais e a busca pelo lucro valem mais que a vida humana, fato esse exposto com toda a sua crueldade nesse momento de agonia que o mundo vive. É preciso não perder de vista que faz-se necessário ampliar e fortalecer os espaços auto-organizados por mulheres, dentro e fora de coletivos mistos como ferramentas de reflexão e transformação dos espaços, para o enfrentamento das desigualdades, em especial no que diz respeito às questões de gênero.
Reconhecer os processos agroecológicos e agroflorestais, assim como o trabalho das mulheres é fundamental para garantir uma nova sociedade mais justa e igualitária, com soberania e segurança alimentar e nutricional, que como pautado, não virá via Fast Food, mas sim, do trabalho laborioso que as mulheres com força de trabalho e habilidades agronômicas, econômicas e sagradas têm mantido e desenvolvido ao longo da história da humanidade. A revolução na alimentação será feminina, ou não será.
Pensando a agroecologia como promotora dos direitos humanos, é que convidamos todxs para na segunda quinzena de maio pensarmos juntxs sobre como essa nova forma de produzir alimentos amplia as garantias de direitos para além da soberania e da segurança alimentar. Nos vemos em breve!
Opiniões, dúvidas e sugestões de temas para novos artigos pertinentes à esta coluna, serão bem-vindas pelo e-mail Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..
FONTES CONSULTADAS
Apenas dez grandes companhias controlam a indústria de alimentos no mundo https://thoth3126.com.br/apenas-dez-grandes-companhias-controlam-a-industria-de-alimentos-no-mundo/ Acesso em 02 e abril de 2020.
A fome afeta 42,5 milhões de pessoas na América Latina e no Caribe http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/591105-a-fome-afeta-42-5-milhoes-de-pessoas-na-america-latina-e-no-caribe Acesso em 02 e abril de 2020.
Brasileiros atingem maior índice de obesidade nos últimos treze anos. https://saude.gov.br/noticias/agencia-saude/45612-brasileiros-atingem-maior-indice-de-obesidade-nos-ultimos-treze-anos Acesso em 02 e abril de 2020.
Brasil está entre países que enfrentam epidemia que combina obesidade e subnutrição https://www.bbc.com/portuguese/brasil-42231526 Acesso em 02 e abril de 2020.
Manifesto Slow Food http://www.slowfoodbrasil.com/slowfood/manifesto Acesso em 04 e abril de 2020.
MANIFESTO da 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional à Sociedade Brasileira sobre Comida de Verdade no Campo e na Cidade, por Direitos e Soberania Alimentar. http://www.abrasco.org.br/site/wp-content/uploads/2017/06/copy2_of_Manifes-to_comidadeverdade.pdf Acesso em 02 de abril de 2020
Mulheres e soberania alimentar: sementes de mundos possíveis. Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS), 2019
Obesidade cresce de forma acelerada no Brasil e se aproxima da taxa dos países ricos, indica OCDE https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50001245 Acesso em 02 e abril de 2020.
Obesidade e outras formas de desnutrição afetam 1 em cada 3 pessoas no mundo https://nacoesunidas.org/obesidade-e-outras-formas-de-desnutricao-afetam-1-em-cada-3-pessoas-no-mundo/ Acesso em 02 de abril de 2020.
10.04.2020