Mulher nasce para florir, embelezar, germinar, frutificar, sombrear e enraizar. Mas, o mundo tem despetalado essas Margaridas e as proibido perfumar.
Falar de violência contra as mulheres é uma tarefa de eleição e revisão histórica. Já que essa epidemia mundial tem uma lista desmesurada de formas de violência contra as mulheres, e, é histórica por ser necessário voltar ao período da expulsão das mulheres do campo no feudalismo, em especial nos momentos em que o capitalismo se institucionalizava, para entender a realidade atual.
A realidade é que mesmo sendo a agricultura a atividade econômica realizada por 48% das mulheres que vivem no campo em todo o mundo, no Brasil, essas mulheres detêm menos de 13% da posse das terras onde realizam seu trabalho e tiram seu sustento diariamente. Esse fato remonta além da expulsão das mulheres das terras comunais, à fragilização do ser feminino, que como pregou a igreja católica no século XVII era “o vaso mais frágil”, criada à partir da costela masculina, e, portanto, um ser humano de segunda classe que necessitava de cuidadores masculinos - pais, irmão, maridos, tios - oficializando assim o patriarcado.
A mulher forjada nos 300 anos de flamas das fogueiras da inquisição era mansa, dócil, bela, recata e do lar, e sendo ela uma mulher rural e uma mera ajudante dos homens - cabeças pensantes - da família. Situação que se perpetua até os dias atuais, onde mesmo sendo a cara da agricultura já que representa 45% da mão de obra no campo nos países em desenvolvimento, mais de 60% em alguns países do continente africano, e responsável por um terço da criação de gado. Essas mulheres que lutam cotidianamente para ter sua valorosa labuta reconhecida como trabalho, recebem apenas 5% da Assistência Técnica e Extensão Rural prestada no Brasil e acessam menos de 10% do Crédito Rural. Vale a ressalva, que essa estrutura governamental de políticas públicas que não fortalece as mulheres do campo, das águas e das florestas reforça o patriarcado e a dependência dessas da figura masculina.
A força feminina, responsável pelo trabalho doméstico não remunerado que hoje estar na cifra de R$ 50 bilhões/ano, mantenedora dos hábitos e culturas alimentares, detentoras de conhecimento e habilidades que podem contribuir com as comunidades onde vivem, uma vez que são reconhecidas como uma força poderosa que pode comandar o progresso global, é também o membro da família que mais sofre com a pobreza que acomete pelo menos 20% da população mundial.
A invisibilidade do trabalho das mulheres do campo, em conjunto com a exaustiva carga de trabalho, que chega a ser até 13 horas a mais que os homens semanalmente, não favorece a participação dessas nas entidades representativas da agricultura familiar. Dados mostram que nas assembleias gerais a participação feminina fica em torno de 10% e a masculina 90%. Vale a ressalva que quando as mulheres participam do quadro diretivo das entidades são quase sempre em cargos secundários, tendo, portanto, muita dificuldade de ascender aos cargos de presidência, e poder assim ter espaço de fala.
Das violências supracitadas contra as mulheres, nada se compara a violência doméstica que assassinou 1 mulher a cada 7 horas em 2019 no Brasil; a cada 2 minutos agride violentamente 5 mulheres, e já lastimou pelo menos uma vez na vida 30% da população feminina mundial. No meio rural essa violência é tão normalizada quanto silenciosa, com poucos dados sobre violência no campo contra as mulheres, pois os frágeis instrumentos de combate à violência contra as mulheres que conquistamos não alcança as trabalhadoras rurais. Distância dos centros urbanos, pobreza e ausência de educação formal favorecem a situação de violência no campo, que é agravada pela falta de diagnóstico e de instrumentos de combate.
A lista de violência, infelizmente, não para nas acima citadas, contudo, tem havido construções sociais ao longo das últimas décadas que vêm dando força e entusiasmo para a edificação de uma sociedade justa, sem violência contra as mulheres e com equidade de gênero. E uma delas é a Agroecologia.
Assim como a agricultura foi uma descoberta das mulheres, foram as mulheres que inventaram a Agroecologia, junto com suas mães, tias e avós que sempre mantiveram os quintais, os pomares, os animais domésticos, a diversidade de sementes e animais produzidos nas unidades familiares. Em especial por essas ações possibilitarem a segurança alimentar – que diga vovó com sua seleção de pés de umbuzeiros e mandioca, garantindo a melhor e mais forte umbuzada de todos os tempos – assim como um complemento da renda familiar – as vendas de ovos, galinha, queijos, leite, nata – são alguns exemplos. Na atualidade, a ampliação dos estudos rurais e o crescente movimento agroecológico que considera todos os componentes dos sistemas de produção tem contribuído para dar visibilidade e reconhecimento econômico ao trabalho realizado pelas mulheres rurais.
Ao valorizar economicamente as atividades tradicionalmente desenvolvidas pelas mulheres – que na lógica da monocultura não tem validade, pois não são lucrativos do ponto de vista do mercado convencional - a agroecologia tem dado condições para a autonomia financeira dessas agricultoras, pescadoras, extrativistas, entre outras, fator de extrema importância para a redução de todas as violências citadas no texto, mas em especial a violência doméstica, uma vez que a independência econômica possibilita a mobilidade física ou jurídica dessas mulheres que juntam forças e se organizam em outros espaços onde tenham segurança. Essa valorização permite ainda que as mulheres se percebam capazes de aprender, estar em outros espaços, enfim, que a vida não necessita ser restrita ao fogão.
A perspectiva agroecológica traz uma mudança radical no modo de se relacionar com a natureza e com as pessoas, possibilitando assim uma concepção ética de cuidado tanto com o meio ambiente quanto com os seres humanos. Abrindo desse modo espaço para questionamentos sobre as relações autoritárias características do sistema patriarcal. Oportunizando perceber a mulher rural como uma parceira nas atividades realizadas na unidade familiar, e não mais, como alguém sem valoração e sem necessidade de direitos e representatividade nos espaços de fala. A importância feminina para as atividades familiares é reforçada pela construção de um processo de transição que exige a integração do conjunto das atividades da propriedade, que normalmente estão sobre a responsabilidade dos diferentes membros da família, quebrando o monopólio masculino da gerência.
Os sistemas agroecológicos têm permitido a participação das mulheres em espaços públicos como as feiras, esse elemento torna a mulher e o seu trabalho visível, assim como permite a troca de experiências e com isso a aquisição de novos conhecimentos e habilidades, favorecendo o reconhecimento social e a elevação da autoestima, um passo a mais na conquista de espaço nos cargos eletivos das entidades representativas da agricultura familiar. A conquista desse espaço tem ainda uma segunda importância, que é a construção da identidade das trabalhadoras das águas, dos campos e da floresta, pois enquanto permanecem sujeitas a papéis domésticos que não são valorados, as mulheres só alcançam identidade por procuração – filha de fulano, irmã de cicrano, mãe de beltrano. Já que as identidades são construídas pelo trabalho produtivo.
Desde a gênese do latifúndio, com a escravização dos povos originários e povos africanos, as relações sociais do campo brasileiro se constituem historicamente pela dominação econômica e patriarcal. A participação das mulheres e seus movimentos efetivando ativamente a promoção da Agroecologia, tem chamado atenção para a necessidade da valorização do trabalho realizado por essas, reforçando a crítica a hierarquização e a fragmentação do trabalho produtivo e reprodutivo, além de defender o compartilhamento das responsabilidades pelo cuidado da casa e da família e reafirmar o direito de serem reconhecidas como agricultoras, camponesas, pescadoras e agroextrativistas.
Assim sendo, o acesso que a Agroecologia tem possibilitado às mulheres agricultoras aos recursos econômicos e produtivos que poderá resultar na redução, de 100 a 150 milhões, do número de pessoas com fome no mundo. Possibilitará às mulheres um rendimento, direito de propriedade à terra e acesso ao crédito que significarão menos crianças desnutridas e/ou obesas. Por fim, dar oportunidades econômicas às mulheres rurais irá resultar num aumento significativo do crescimento econômico e na redução da pobreza. Pois como precisamente vem preconizando a ONU, “as mulheres rurais são a chave para a fome zero no mundo”.
Agroecologia tem significado acesso às mulheres rurais. Para entender a importância desses acessos para a redução de duas das três pandemias mundiais - obesidade e desnutrição - e que te convido para o nosso próximo encontro, uma semana após a Feira do Arroz, na Sexta Feira da Paixão. Até breve !!!
Opiniões, dúvidas e sugestões de temas para novos artigos pertinentes à esta coluna, serão bem-vindas pelo e-mail Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..
FONTES CONSULTADAS
Agroecologia e relações de gênero em projeto societário. In: Mulheres Camponesas: trabalho produtivo e engajamento político. HENN, I. A. Niterói, 2013.
Atlas de la Mujer Rural em América Latina y em Caribe. FAO, 2017.
Carta política do II ENA. Recife, 2006.
Colonas italianas no Sul do Brasil: estigmas e identidade. In: Mulheres Camponesas: trabalho produtivo e engajamento político. ZANINI, M. C. SANTOS, M.O. Niterói, 2013.
Mulheres agricultoras e a construção dos movimentos agroecológico no Brasil. In: Mulheres Camponesas: trabalho produtivo e engajamento político. SILIPRANDI, E. Niterói, 2013.
La agricultura com cara de mujer. FAO, 2015.
Um olhar feminista sobre as lutas por sustentabilidade no mundo rural. In: Agricultura familiar camponesa na construção do futuro. SILIPRANDI, E. Rio de Janeiro, 2009.
13.03.2020