Andarilhar o caminho das mulheres do campo, da floresta e das águas na busca pela representatividade e construção dos movimentos sociais que deram e dão suporte a construção e o desenvolvimento da agroecologia é semelhante ao apreciar uma flor de umbuzeiro; é encher os olhos ao ver desabrochar flores nos meses secos do Semi Árido Brasileiro; é respeitar a bravura e a persistência em transformar a Caatinga num espetáculo contrastante de cor, onde o escuro da mata seca ganha vida com o seu branco amarelado; e é enamorar-se pela delicadeza da flor que através dos seus frutos germinará a “árvore sagrada do Sertão”.
As flores que compõe o meio rural brasileiro perceberam, com a expansão da Revolução Verde, a diferenciação ocorrida nos setores da produção familiar com a pauperização da população do campo, o êxodo rural e a degradação ambiental. Os anos 80 e 90 foram marcados pelo surgimento de propostas que contrapunham o modelo em crescimento, onde dentre essas estava a agroecologia. Mesmo em um movimento de essência tão feminina como é o caso da agroecologia, para descortinar a participação das mulheres nesse espaço, é preciso seguir a trajetória das mulheres de Canudos, Pau de Colher, Caldeirões, Contestado; é preciso buscar as Dandaras, Marias Bonitas, Diolindas, Anas Marias e tantas outras mulheres que mesmo participando das lutas sociais nem sempre tiveram sua participação reconhecida.
Até a década de 1980, a participação feminina se dava por meio da atuação dos maridos ou de outros familiares, tendo inúmeras situações onde as mulheres não ficavam na sala no momento das reuniões nem compartilhavam com os homens o momento das refeições pós ou pré reuniões. Esse cenário começa a mudar nessa mesma década onde é possível obter relatos de que em 1982 já haviam mobilizações de mulheres no interior do Nordeste para protestar contra a sua exclusão nas frentes de emergências, ação realizada pelos governos afim de atenuar os efeitos das secas prolongadas. Dois anos depois, criou-se o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais no Sertão Central de Pernambuco, responsável pela reinvindicação junto a CONTAG, da sindicalização das mulheres. E como no movimento das mulheres nunca se cogitou o Nordeste ficar independente (apesar da beneficie de ter Asa Branca como hino nacional), no Sul do país, desde 1980, já ocorriam reuniões provocadas pela Igreja e os movimentos sindicais, que discutiam a sindicalização das mulheres.
O ano de 1985 é tido como um ano chave para as mulheres do campo, da floresta e das águas, em virtude da visibilidade pública das demandas dessas mulheres que ocorre através de dois eventos: mobilização em Nova Timboteua, no Pará e a aprovação no VI Congresso da CONTAG, pela primeira vez, de uma moção de apoio à sindicalização das mulheres e o reconhecimento da sua condição profissional de trabalhadora rural. Ainda na década de 80, temos: 1984 passeata em Erechim (RS) com mil agricultoras e a criação do Movimento de Mulheres Agricultoras em Santa Catarina; 1985 I Encontro Estadual da Mulher Trabalhadora Rural no RS, com 10 mil mulheres e Fundação do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Paraná (MMTR-PR); 1986 I Encontro das Mulheres Trabalhadoras Rurais da Paraíba; Fundação do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais de Pernambuco; 1987 Fundação do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste, em João Pessoa, na PB; e 1989 Fundação do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais no RS (MMTR-RS), além de outros inúmeros movimentos em todo país; vale destacar ainda que em 1989 as Normas Gerais do MST apresentaram um capítulo apresentando a necessidade das mulheres se articularem, assim como estimular a participação dessas nas reuniões e atos do movimento como forma de combater todas as formas de preconceitos.
Já na década de 1990, entre os marcos gerais da organização das mulheres trabalhadoras rurais, destacam-se: os Gritos da Terra, a partir de 1994; I Encontro Nacional das Mulheres Militantes do MST e I Encontro Latino Americano e do Caribe da Mulher Trabalhadora Rural em 1996; em 1998 surge o Movimento Articulado de Mulheres da Amazônia (MAMA); e o início da preparação da primeira Marcha das Margaridas em 1999, que ocorreria no ano 2000. Em âmbito internacional, o destaque foi o surgimento da organização Via Campesina, que articula movimento de camponeses, indígenas e pescadores.
Nos anos 2000 a Marcha das Margaridas se consolida como o maior movimento das mulheres rurais do país, e tem na pauta, um conjunto de reivindicações históricas dos movimentos: o reconhecimento das mulheres enquanto trabalhadoras na agricultura; reforma agrária com acesso à terra para as mulheres; ampliação dos direitos trabalhistas e previdenciários das mulheres; acesso a políticas produtivas; participação das mulheres nas políticas de preservação ambiental; acesso a documentação básica; políticas de saúde, educação, e prevenção da violência contra as mulheres no meio rural.
Ao longo de 20 anos, a Marcha das Margaridas teve conquistas importantes como: acesso das mulheres ao Pronaf B; titulação conjunta de mulheres e homens em carácter obrigatório; criação do Pronaf Mulher; Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural; garantia de 5% dos recursos do Programa de Aquisição de Alimentos aos grupos produtivos de mulheres; garantia de 30% dos recursos do Pronaf para as mulheres; Patrulha Maria da Penha Rural; e no campo da agroecologia, a criação da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, instituída pelo Decreto no 7.794 de agosto de 2012. Partindo do referido decreto, a mobilização que traz a força e a coragem das mulheres do campo, das águas e da floresta, lograram a construção do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica – Planapo, que entre outras ações reconhece e valoriza o protagonismo das mulheres na produção orgânica e de base agroecológica, e assegura o atendimento de 50% de mulheres no conjunto do público da assistência técnica, além de destinar 30% dos recursos de ATER para projetos específicos de mulheres.
Entre as Marchas que fortaleceram e fortalecem a caminhada das mulheres na agroecologia não poderíamos deixar de falar da Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia, que surgiu na Paraíba em 2010, com o objetivo de dar visibilidade ao papel das camponesas na agricultura familiar e denunciar todas as formas de violência contra as mulheres. A marcha é um marco da associação do feminismo com a agroecologia, através da mobilização e do empoderamento das mulheres para a promoção de equidade nas relações de gênero no âmbito da família camponesa.
Desde 2004 com a criação do Grupo de Trabalho de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia - ANA, formado por organizações de assessoria no campo agroecológico, organizações feministas e movimentos de mulheres, tem havido a construção junto as mulheres que militam no campo da agroecologia de intercâmbios, sistematização e divulgação de experiências e a construção de políticas públicas. Podemos destacar ainda a participação das mulheres nos Encontros Nacionais de Agroecologia, onde já tomam acento em 50% ou mais das vagas, e o GT-Gênero da ANA, onde as mulheres têm participado ativamente da promoção da agroecologia, chamando a atenção para a necessidade de valorização do seu trabalho; criticando a hierarquização e a fragmentação entre trabalho produtivo e reprodutivo; defendendo o compartilhamento das responsabilidades pelo cuidado da casa e da família; reafirmando o direito de serem reconhecidas como agricultoras, camponesas e agroextrativistas.
Falar da jornada das mulheres rurais na agroecologia é também contar a história da Casa da Mulher do Nordeste (CMN), Centro Sabiá, o Centro Feminista Oito de Março (CF8), no Rio Grande do Norte, e o Cunhã Coletivo Feminista, na Paraíba, Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais – ANMTR –, reunindo as mulheres de Movimentos Autônomos – MA –, Comissão Pastoral da Terra – CPT, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, Pastoral da Juventude Rural – PJR, Movimento dos Atingidos pelas Barragens – MAB, alguns Sindicatos de Trabalhadores Rurais.
E por fim, não poderíamos deixar retratar aqui a luta de mulheres como: Elisabete Teixeira, líder camponesa, nascida em Sapé (PB), fundadora da Liga Camponesa de Sapé em 1958, que tinha como objetivo lutar pelos direitos dos/as trabalhadores/as e pela reforma agrária. A mesma tornou-se símbolo de resistência nos anos 60, no Nordeste do Brasil, que com a morte do companheiro, passa a ser perseguida e entra na clandestinidade fugindo das forças repressivas do regime militar, trocando de nome, assumindo a identidade de Marta e sendo dada por morta até o fim da ditadura militar; indicada ao Nobel em 2005, Vanete Almeida, Nordestina de Custódia (PE), desenvolve seu trabalho com mulheres rurais no início na década de 1980, quando saía de casa de madrugada e percorria 30 quilômetros de carona em caminhões com o único objetivo de conscientizar mulheres de seus direitos. Foi coordenadora Internacional da Rede de Mulheres Rurais da América Latina e do Caribe e assessora da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco – Fetape. Sua história inspirou o livro Ser Mulher num Mundo de Homens, de Cornélia Parisius. E nessa lista de Nordestinas Arretadas – sim, estou puxando brasa para meu espeto de carne de bode assada – a inspiradora Margarida Alves que iniciou sua jornada através da igreja católica onde obteve apoio para iniciar suas atividades junto ao Sindicato Rural de Alagoa Grande (PB), onde ficou de 1973, até 1982. Como resultado do seu trabalho a mesma moveu mais de 600 ações trabalhistas contra os usineiros e senhores de engenho da região, ganhando todas elas, além de lutar pelo acesso aos direitos já adquiridos pelos/as trabalhadores/as urbanos/as, como décimo terceiro salário, jornada de oito horas semanais, férias anuais e carteira assinada. A mesma dá nome a maior Marcha de Mulheres Trabalhadoras Rurais do País: A MARCHA DAS MARGARIDAS.
O movimento da agroecologia coaduna com o movimento das mulheres por ambos serem movimentos de resistência ao modelo de desenvolvimento em vigor e os problemas sociais, culturais, ambientais e econômicos causados pelo modelo supracitado. Ambos representam a luta dos/as camponeses/as pela autonomia frente ao capital e ao agronegócio. A agroecologia da mesma forma que o movimento de mulheres rurais, buscar construir relações onde as mulheres não estejam susceptíveis aos diversos tipos de violência, onde essas possam ter autonomia sobre seus corpos e não mais o sistema patriarcal que concebe esse direito aos homens, onde a reprodução seja por escolha e não a falta dessa, e os direitos sexuais sejam assegurados, assim como os espaços de falar, poder e representação política.
A perspectiva agroecológica tem demonstrado potencial de abrir espaços para que as mulheres agricultoras, pescadoras, extrativistas, quebradeiras de coco, marisqueiras, entre outras enfrentem sua condição de vulnerabilidade e, neste sentido, conquistem mais poderes nas esferas pessoal, produtiva, familiar e política. Através da agroecologia tem sido possível o enfrentamento à violência que as mulheres vêm sofrendo desde que suas terras foram tomadas no período feudal e essas tiveram seu papel e seu trabalho desvalorizados. Desse modo seguindo a perspectiva de nem matar formiga, nem oprimir as mulheres é que seguiremos a trilha das beneficies da agroecologia para a luta feminina e o fim da violência contra as mulheres rurais no nosso próximo encontro. Inté, nos vemos em meio aos festejos de São José.
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FONTES CONSULTADAS
Agroecologia, campesinidade e os espaços femininos na unidade familiar de produção. BIASE, L. Piracicaba, 2010.
As flores e os Frutos da luta: o significado da organização e da participação política para as Mulheres Trabalhadoras Rurais. JALIL, L. M. Rio de Janeiro, 2013.
Mulheres e agroecologia: a construção de novos sujeitos políticos na agricultura familiar. SILIPRANDI, E. Rio de Janeiro, 2009.
Rompendo a cerca do isolamento: as relações entre a Agroecologia e as questões de gênero. SANTOS, M. K. C. A. Recife, 2012.
14.02.2020