RESGATANDO O FEMININO


A Vinha Encarnada - Vincent van Gogh , 1888

O mundo contemporâneo vive uma crise em todos os setores, e a produção de alimentos bons, limpos e justos estão no topo dessa problemática, uma vez que as pessoas a cada dia se alimentam com menos qualidade, e muitas com menos quantidade, gerando duas das três pandemias mundiais: a desnutrição e a obesidade. A busca por soluções para sanar a fome no mundo coloca as diversas formas de fazer agricultura em evidência, já que se busca para além da produção de alimentos, sustentabilidade ambiental, social e econômica.

As atuais crises, em especial a crise ambiental, veio questionar a racionalidade e os paradigmas que impulsionaram e legitimaram o sistema econômico que negou a natureza, a coletividade, destruiu o poder das mulheres, e teve como pilares a conquista, a escravidão e o roubo dos povos. Sistema esse que expulsou camponeses e camponesas de suas terras e, a posterior, se firmou no meio rural com a Revolução Verde.

Esse novo modelo de produção agrícola fez perder a visão, o gosto, o tato e o olfato e com eles foram-se também a sensibilidade estética e ética, os valores, os sentimentos, a consciência e o espírito. A Pacha Mama desapareceu por completo quando a revolução científica tratou de substituir a concepção orgânica da natureza pela metáfora do mundo como máquina. É interessante ressaltar que essa transformação era imprescindível, uma vez que a terra como organismo vivo e mãe – Gaia – restringia e limitava as ações dos seres humanos. Já que a terra não poderia ver vista como progenitora, madre, protetora, uma vez que possuidora desses valores seria uma violação do comportamento ético humano levar a efeito atos destrutivos contra ela. Assim sendo, o homem transforma a natureza e passa a ver as matas como ninhos e reservatórios de indolência, preguiça e miséria. E como meio de justificar as ideias mecanicistas os pensadores recorriam entre outros argumentos, aos argumentos bíblicos, como os contidos em Gênesis, IX, 2-3 que diz: "Temam e tremam em vossa presença todos os animais da terra, todas as aves do céu, e tudo o que tem vida e movimento na terra. Em vossas mãos pus todos os peixes do mar. Sustentai-vos de tudo o que tem vida e movimento”.

Baseados na ideia que o mundo natural era para servir o homem e convencido de que o mundo era uma maquina, nenhuma violência contra a mãe terra e todos os seres femininos seria do descontentamento de Deus. Desse modo, com a autorização do criador, o homem começa sua caminhada rumo à devastação de todas as formas de vida na Terra, como as ocorridas no passado e as que ardentemente são vistas na atualidade.

Em decorrência da destruição dos campos onde eram produzidos alimentos causada pela Segunda Guerra Mundial que gerou um mundo de fome, governos e cientistas das áreas agrárias buscaram sanar a escassez de alimentos através da maximização da produção, o que viria com o uso maciço de inseticidas, fungicidas e herbicidas, que levou inicialmente a um aumento espetacular da produção agrícola. Contudo, o uso maciço de fertilizantes industrializados e pesticidas não ajudou nem os agricultores, nem a terra, nem os milhões de famintos do mundo inteiro, fato é, que nos dias atuais, temos mais de 800 milhões de pessoas passando fome no mundo.

Hoje sabemos que esta forma de produção tem levado ao comprometimento do futuro agrícola, e isso, ocorre devido à agricultura moderna utilizar intensamente o solo, fazer uso excessivo da irrigação, dos pesticidas, dos fertilizantes industrializados, e a produção ser quase que exclusivamente a monocultura através da manipulação genética das plantas.

Foi a partir de constatações da insustentabilidade - aquecimento global, redução da camada de ozônio, desertificação, violência no campo (...) perda das florestas - que começou a ser inserida uma nova proposta de produção agrícola, que estivesse afinada com a sustentabilidade, surgindo daí as chamadas agriculturas alternativas, que tinham por objetivo resgatar os antigos métodos de produção, e que de algum modo apresentavam formas sustentáveis no modo de produzir. Dentre essas novas formas de produção está a agroecologia, que surge como uma ciência que resgata o conhecimento agrícola tradicional desprezado pela agricultura moderna.

A agroecologia tem possibilitado uma agricultura que é ambientalmente consistente, altamente produtiva e economicamente viável, através de uma abordagem agrícola que incorpora cuidados relacionados ao ambiente, problemas sociais e a sustentabilidade ecológica do sistema produtivo. A produção agroecológica abre espaço para o resgate do conhecimento feminino, a inserção e o reconhecimento do trabalho da mulher rural, além de fortalecer os espaços de fala dessas mulheres. A agroecologia tem permitido as mulheres o enfrentamento à expansão do capitalismo via agricultura moderna, que através da monocromia da Revolução Verde sequestra alimentos e água para fazer negócios, destruindo a economia e os sistemas de conhecimento dessas, tornando as mulheres rurais marginalizadas e susceptíveis a violências diárias.

Como pode ser averiguado em outros artigos dessa coluna, as mulheres desde a descoberta da agricultura foram as grandes detentoras dos saberes agrícolas, desempenhando importante papel na conservação da biodiversidade, domesticação das plantas, além de conhecimento sobre recursos genéticos e fitogenéticos, o que tem possibilitado manter ao longo da história as bases para a segurança alimentar.

A agroecologia apreça atividades que tradicionalmente foram desenvolvidas pelas mulheres e ao longo da história da agricultura passaram a serem desvalorizadas e lida como simples ajuda, como o trabalho nas hortas, pomares, na produção de pequenos animais, agroindustrialização de alimentos, pequenos roçados, seleção de sementes e plantio dessas. Através dos sistemas de produção agroecológicos todos os membros da família são envolvidos, o que faz com que o monopólio gerencial do homem seja quebrado, sendo possível dessa forma compartilhar a execução e o resultado dessas atividades com toda a unidade familiar. O modelo agroecológico preconiza ainda que as mulheres estejam presentes nos espaços de discussão e tomadas de decisões, além de capacitações e reuniões, excluindo dessa forma a misoginia que tem estado presente na vida de quase todas as mulheres rurais.

Outro avanço logrado pelas mulheres possibilitado pelo sistema agroecológico foi a participação dessas nos espaços de comercialização, que tem propiciado o reconhecimento social do trabalho feminino, gerando por conseguinte autoestima e autonomia, essa última oriunda da renda permanente fruto direto do seu trabalho. Vale a ressalva que mesmo dentro dos processos produtivos agroecológicos ainda há patriarcado e falta de reconhecimento do trabalho das mulheres rurais em muitos espaços. Infelizmente.

Contudo, de forma geral a agroecologia revoluciona ao desenvolver-se reconhecendo à perspectiva de gênero, promovendo alternativas de eficiência e equidade em suas funções, contribuindo para perceber e obter mudanças importantes no estilo de vida dos/as agricultores/as ao alcançar o equilibro adequado no seu ambiente produtivo. A agroecologia não é só produção sem veneno, é a construção de novas relações com o universo, o mundo, a terra, a fertilidade, o feminino, com a Mãe Terra. Construindo diariamente melhores condições para as mulheres e para todos, reavivando memórias e vozes do passado, histórias das comunidades, reconectando as pessoas com a natureza, não concebendo nem aceitando nesse sistema produtivo machismo, exclusão e violência. Como relatou uma agricultora em uma plenária de agroecologia, “quando a gente fala em agroecologia, fala em vida, mesmo”. Falamos em vida ao produzir alimentos acessíveis, com qualidade e sem veneno; falamos em vida quando através da agroecologia buscamos equidade de gênero tão necessária para o fim da violência contra as mulheres que tem ceifado centenas de vidas femininas.

E nesse contexto de construção da vida e pela vida através da produção agrícola, acreditando que, “um pingo de chuva um dia se transformará em chuvisco”, que no nosso próximo encontro vamos fazer um passeio florido e perfumoso, tanto quanto os artigos da Artesã do Aroma, sobre as mulheres no movimento agroecológico brasileiro. Nos vemos antes do Homem da Meia Noite abrir o carnaval do Recife. Inté!!!

Opiniões, dúvidas e sugestões de temas para novos artigos pertinentes à esta coluna, serão bem-vindas pelo e-mail Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

FONTES CONSULTADAS

Agroecologia: a dinâmica produtiva da agricultura sustentável. ALTIERI, M. Porto Alegre, 1998.
Agroecologia: Processos ecológicos em agricultura sustentável. GLIESSMAN, Stephen R. Porto Alegre, 2001.
Mulheres e agroecologia: transformando o campo, as florestas e as pessoas. SILIPRANDI, E. Rio de Janeiro, 2015.
O ponto de mutação. A ciência, a sociedade e a cultura emergente. CAPRA, F. São Paulo, 1982.
Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. LEFF, Enrique Petrópolis, 2001.

17.01.2020

Flores que Germinam



A relação visceral das Mulheres Rurais da descoberta da agricultura à revolução agroecológica.


Simone Santarém, Sertaneja de Casa Nova – Bahia, é graduada em Medicina Veterinária pela Universidade Federal Rural de Pernambuco - UFRPE, com mestrado pela Universidade de Brasília - UNB no Selo da Agricultura Familiar – SIPAF. Com origem na Agricultura Familiar, cresceu passando 6 meses ao ano em meio aos cultivos de feijão, melancia e milho; tirando leite de cabras, catando umbu, e durante os outros 6 meses, nas farinhadas, onde vivenciava diariamente a sororidade feminina, e as conversas que revelavam as realizações e os desejos das Mulheres Rurais.

Realizou seu trabalho de conclusão da graduação em sistemas agroecológicos em Taguaritinga do Norte – Pernambuco. Nessa vivência, presenciou muitas vezes a forte presença das mulheres na agricultura e, em especial, na transição agroecológica. Como consultora do PNUD, participou ativamente da elaboração do Selo Mulheres Rurais e na atualidade segue como Embaixadora da Campanha Mulheres Rurais, Mulheres com Direitos da Food and Agriculture Organization - FAO. Com o intuito de dar voz às mulheres rurais, coloca seus anseios e desafios no blog Flor de Umbuzeiro. Empenha-se, diariamente, para que o histórico trabalho dessas tenha o mérito devido. Assim, esse será um espaço para descortinar o papel fundamental das mulheres na história da agricultura e, por conseguinte, da agroecologia, assim como suas lutas e desafios. Bem-vindos.