Sob uma perspectiva coletiva com base comunal, as mulheres europeias até o século XIV viviam sob a égide da solidariedade e da amizade entre elas, compartilhando entre si ideias, dividindo angústias e brindando nas tavernas com as gossips. Tanto nas áreas urbanas como rurais, as mulheres eram independentes dos homens, já que tinham suas próprias atividades agrícolas e não-agrícolas. E vivendo de forma a compartilhar a execução e o resultado dessas atividades, era possível permanecer em conexão com a natureza, e com a cooperação feminina, que era a força motriz dessa época, e possibilitava a valorização do conhecimento e do trabalho feminino.
Fazendo uso das terras comunais que eram o centro da vida social das mulheres, lugar utilizado para reunir-se, trocar noticias, receber conselhos e formar pontos de vista próprios, as mulheres trabalhavam a agricultura no que poderia ser classificado como um socialismo primitivo, onde as práticas femininas eram compartilhadas através das relações comunitárias de sistemas de conhecimento, que foram a base do poder das mulheres na Europa Pré-Capitalista.
Contudo, nesse mesmo período, ocorrem grande revoluções camponesas na Europa, revoluções essas com grande participação feminina, que disputavam com os senhores feudais as terras comuns que passavam a serem cercadas pela burguesia. Em virtude dos agricultores e agricultoras não terem logrado manter as terras coletivas, os cercamentos resultaram na expulsão desses, fazendo com que as mulheres perdessem espaço na sociedade, uma vez que sem as áreas comunais, a implantação do sistema feudal e posteriormente o inicio do capitalismo, leva a uma disputa de espaço para ocupação da mão de obra, seja ela urbana ou rural. Em síntese, inicia-se uma disputa pelos postos de trabalho entre homens e mulheres.
E é nesse cercamento, nessa ausência do coletivo, e na divisão sexual do trabalho que as mulheres urbanas, e também rurais, passam a ser confinadas ao trabalho reprodutivo que nesse momento encontrava-se em processo de total desvalorização. É importante destacar que o trabalho agrícola para autoconsumo fora incluído nas atividades de reprodução da família, que também entra no rol da desvalorização, e passa a ser classificado como ajuda.
Nos séculos seguintes com a posição social deteriorada, as mulheres e suas gossips passam a serem vistas como mulheres sem ocupação, que faziam intriga sobre outras mulheres, e no tocante ao tenebroso período da Caça às Bruxas, eram elas quem denunciavam as outras mulheres. Fazendo com que o poder das mulheres de criar as próprias conexões sociais, que possibilitava o enfrentamento da autoridade masculina, fosse perdida. São perdidas também as memórias, as vozes do passado, a história das comunidades, a identidade coletiva e um profundo senso de coesão que existia entre essas mulheres rurais. Sendo silenciadas e excluídas dos lugares de tomada de decisão e privadas de determinar a própria experiência, as mulheres são forçadas a conviverem com a misoginia.
O capitalismo, essa contrarrevolução às lutas antifeudais, imposta pelos senhores feudais, os mercados patrícios, bispos e papas que buscavam resolver um conflito centenário, produziu uma grande sacudida mundial, pois, transforma o corpo masculino em uma máquina de trabalho, e sujeita as mulheres a reprodução da força de trabalho, diante da desvalorização do seu trabalho, fazendo com que essa mulher passe a ser uma serva do sistema capitalista iniciado na Europa. A mulher passa então a ser um prêmio dado aos homens em troca das suas terras perdidas.
E para lograr grande resultados e não possibilitar a insurgência feminina, em especial das mulheres rurais, que tiveram as maiores perdas em relação às mulheres urbanas, o novo sistema implanta dois séculos de terrorismo às mulheres que não aceitavam a sua perda de autonomia, a desvalorização do seu conhecimento, e a obrigatoriedade do trabalho reprodutivo sem nenhuma valorização. Ademais, implantam a caça às bruxas, que levou às fogueiras da inquisição um número expressivo de mulheres com acusações de serem velhas rabugentas que permitiam e forçavam seus animais adentrarem as terras que no momento tinha cerca e, por conseguinte, proprietário. Ou mulheres acusadas de manipular plantas silvestres para uso medicinal e ou alimentício fora do que era padronizado como comum.
E assim, temos a brutal transição dos sistemas coletivos passando pelo feudalismo até o capitalismo tanto nas áreas urbanas como nas áreas rurais, que elimina as terras coletivas onde as mulheres vinham até então tendo autonomia produtiva e reprodutiva. E nas chamas das fogueiras da inquisição foram queimadas também as relações coletivas, conhecimentos, sororidade e a relação sagrada com a natureza, que por ser feminina também deve ser desvendada, explorada e colocada a disposição dos homens. Essa mesma fogueira acende a tocha das violências contra as mulheres, não só pelo ato de queimar mulheres vivas, mas por passar a negar a importância do trabalho feminino para o bem-estar da sociedade. Negar o protagonismo das mulheres rurais no que concerne a geração de conhecimento que fez criar as primeiras sociedades com o desenvolvimento da agricultura. Negando ainda a efetiva participação feminina na geração de renda e segurança alimentar das famílias que viviam de forma coletiva.
Filhas e netas das bruxas que o sistema não conseguiu queimar, continuaram trabalhando, agora sobre a sombra negra da fumaça das fogueiras e a mão pesada do patriarcado que passa a tratar essas como um simples corpo, um ser humano de segunda classe. E passando mais alguns séculos de modificações na sociedade e no processo de produção agrícola, chegamos na Revolução Verde, que será esse o tema do nosso próximo encontro. Nos vemos antes de Noel nos visitar com os produtos frutos desse sistema econômico que queima vivo aqueles que se opõe a ele.
Opiniões, dúvidas e sugestões de temas para novos artigos pertinentes à esta coluna, serão bem-vindas pelo e-mail Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..
FONTES CONSULTADAS
Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. - Silvia Federici, São Paulo, 2017
Mulheres e caça às bruxas. - Silvia Federici, São Paulo, 2019.
01.12.2019